rascunhos

vira e mexe eu acho uns escritos assim:

“esse cancer tem me ajudado a recuperar, a resgatar o amor por mim mesma. a necessidade de me cuidar, com mais delicadeza tem devolvido minha inocência, me religando com a minha essência. me lembra que eu e a vida somos muito além do espelho. parece tão fácil viver como se não existisse mistérios. os atalhos nos desviam e nos levam pra mais longe de nós de mesmos.”

viajando

quando eu nasci tinha um anjo-viajador de plantão que me cobriu com a insaciável sede de ver novas paisagens. desde de pequena que tenho esse faniquito, essa coceira de sair perambulando por lugares desconhecidos. levar os olhos pra passear alimenta minha alma, abre meu coração e recarrega as minhas energias. nem precisa viajar pra longe, conhecer o novo em qualquer lugar ta valendo. me sinto uma sortuda de ter encontrado um playmate que tem essa mesma sede, esse gosto pelo movimento e pelo prazer de andar pelo mundo afora.

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amanhã tem viagem e dessa vez um pouco mais longa: 3 dias em Praga, 8 dias num cruzeiro no rio Main na Alemanha e 7 dias em Paris.

Desde de quando morei em Paris lá em 1981 que tinha vontade de conhecer Praga. Minha amiga francesa Zoé, pariense até o talo, tinha acabado de voltar de lá impressionada com a beleza da cidade. e eu fiquei com esse desejo guardado esperando a hora. agora lá vou eu conhecer a bela cidade, matar saudades da Zoé em Paris e encher os olhos de paisagens no meio do caminho. haverei de mandar fotos e relatar o que vou vi-ver no velho mundo. ​

 

simplicidade suficiente para crer

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essa coisa da solidão é curiosa mesmo, porque ao mesmo tempo que me sentia rodeada de amores, carinho, afeto, ajudas de todo jeito, sentia essa sensação, talvez mais de solitude do que de solidão. era como se eu me sentisse mais perto de mim mesma.
não significava estar sozinha, separada, pelo contrário, muitas horas eu me sentia bem inteira como raras vezes na vida eu senti. conexão. fico até sem encontrar palavras pra explicar esse sentimento. que ao mesmo novo, estranho, talvez era o que me dava paz. sei lá. foi uma experiência tão diferente de tudo que eu já conhecia que ainda estou digerindo e encontrando significados. A poesia explica melhor:

Rainer Maria Rilke

“… Se certos estados do seu espírito lhe parecem mórbidos, esteja certa de que a moléstia é para o organismo um meio de expulsar o que lhe é adverso. É preciso, pois, ajudar a doença a seguir o seu curso. Para o corpo é o único meio de se defender e de se desenvolver. Passam-se tantas coisas dentro de si neste instante! (…)

E é sobretudo o que deve fazer neste momento: aguardar. Não se observe muito. Evite tirar conclusões sumárias do que passa em si. Abandone-se e não raciocine. Caso contrário, seria levada a censurar o seu próprio passado (…)

Apenas posso desejar, uma vez mais, o voto de que possa encontrar, em si mesma, paciência bastante para suportar e simplicidade suficiente para crer. Entregue-se cada vez mais à sua solidão e a tudo que é difícil.
Quanto ao resto, tenhas confiança na vida. Creia: a vida tem sempre razão.

 

maria das dores

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eu acho que minha voz continua a mesma, mas o meu cabelo e todo o resto do meu corpo ainda estão aqui se reinventando.

me enganei quando pensei que ia ter uma trégua de consultas médicas. o cancer se foi, mas outras coisinhas nem tão miúdas apareceram, como por exemplo “mácula degenerativa úmida” no olho esquerdo.
(A DMRI úmida, vasos sanguíneos anormais crescem sob a mácula. Esses vasos vazam sangue e fluidos na mácula que causam danos nas células fotorreceptoras. A DMRI úmida pode progredir rapidamente e causar perda substancial da visão central.)

ano passado comecei a sentir minha vista diferente, às vezes tinha que espremer os olhos pra conseguir ler. procurei um oftalmologista que viu nos exames uma mancha na parte de trás do olho e me indicou um especialista de retina. acho que em setembro tive minha primeira consulta com o especialista. eles fizeram uma ruma de fotos com diferentes aparelhos e a conclusão foi de esperar pra ver o que acontece. voltei em novembro, fizeram mais fotos inclusive com contraste injetado e mesmo assim a recomendação foi de esperar mais 2 meses e depois mais 3 meses. e quando fui na consulta em maio veio o diagnóstico da AMD (age-related macular degeneration). aged, eu? 55 anos, pensei que ainda fosse uma mocinha. de repente me aparece essa doença que normalmente afeta pessoas com idade mais avançada.
[e diz que não tem nenhuma relação com a quimioterapia nem a droga que estou tomando (letrozol)]

fiquei passada com a notícia e mais ainda quando o médico disse que ia dar uma injeção dentro do olho e foi logo colocando umas gotas pra anestesiar. eu nem sei descrever direito como eu fiquei. quando ele voltou na sala pra botar mais umas gotas, eu sugeri tomar a injeção em outro dia porque eu estava muito nervosa. ele rebateu firme dizendo que eu já estava ali e era melhor não perder mais tempo.
e assim foi que tive uma agulha enfiada no olho. uia uia uia.
na verdade não senti a agulha entrar e é super rápido, mas fiquei zuruó depois que saí de lá. eles me deram um colírio-gel que aliviava o ardor, uma queimação, que aos poucos foi passando e consegui dormir normalmente. quando acordei no dia seguinte não senti nada anormal no olho, mas o meu juízo ficou fervendo.

a possibilidade de ficar cega de um olho (sabe deus se o outro vai ser afetado) me deixou bem vulnerável mas quando voltei um mês depois veio o alívio: a injeção estava funcionado bem e segundo o médico não perderei a vista.

talvez cada um de vocês conheça uma pessoa que tem essa doença e que toma a injeção quase todo mês e que tudo bem. amén!
eu tive uma amiga bem idosa que ficou com a vista danificada e isso era o que eu conhecia. hoje tem esses tratamentos que ajudam a estancar o processo e haverei de tomar as injeções necessárias na boa. doeu viu! mas agora já passou. _/\_

a casa de hóspedes

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há alguns anos atrás, eu li um texto que falava sobre aceitar a realidade. ponto. e que a rejeição “do que é”, é o que gera o sofrimento. meu coração foi logo abraçando mas o intelecto ficou cabreiro.
foi me aparecendo mais e mais material que me levava pra mesma escola. a psicologia budista tibetana ensina a impermanência da vida, tudo-muda-o-tempo-todo. e se nada permanece, então deixa estar que já já muda. mas se a gente não aceita o que ta vivendo e se apega ao acontecimento, a gente força a permanência dele.

o pensamento/oração de são francisco que virou mote do AA, pede pra aceitar as coisas que não podem ser mudadas – re.a.li.da.de; mudar o que pode e principalmente a ter sabedoria pra distinguir os dois.

essa vida é cheinha de dores, independente do nosso desejo, e melhor a gente se responsabilizar de como vai lidar com elas.

enfim, comecei a falar disso porque quando recebi a ligação da minha médica dizendo que a biópsia da aspiração tinha dado positiva, ou seja, eu tinha um cancer, pensei “ta brinbcando né?” claro que fiquei chocada. lembra da propaganda “caspa, eu?”, pois é, câncer eu?
mas tinha tanta coisa acontecendo na minha vida naquelas semanas que eu simplesmente “chamei a Lilia-Pixôta” pra entrar em ação.
Ela, a Lilia-Pixôta era uma produtora (aliás muito competente) que estava aposentada, mas na hora H funcionou perfeitamente.
daí pra frente foi arregaçar as mangas e tomar todas as providências que precisava tomar.
aceitei sem sequer saber que estava aceitando aquela realidade absurda. e entendi, não necessariamente por meio do intelecto, que eu não tinha nenhum controle sobre o câncer, mas que eu ia ser responsável pela busca em me sentir bem, ou pelo menos amenizar as dores inevitáveis.

tem momentos que eu sinto, fortemente, que existe uma ordem no caos. o que muitas vezes parece ser só desordem, aos poucos vai se decifrando (plagiando algum escritor que diz que o caos é uma ordem a ser decifrada).
a maior lição dessa aula chamada câncer, é que a gente não tem controle sobre nadinha de nada. diz outro escritor sábio que o aprendizado só se dar quando existe mudança. pois pronto, mudei, hoje já consigo só querer controlar 89,9% da vida 😀
nesses outros 10.1% sinto que há uma engrenagem funcionando e que se a gente não atrapalhar, a gente consegue sentir alguns segundos de paz. uma benção.

então é isso, raciocínio doido, mas a idéia é que, já que a gente não controla nada mesmo, aceitar o que a vida apresenta é pura sabedoria. mesmo que seja um câncer.

e para ilustrar, um poema de Rumi:

A CASA DE HÓSPEDES

O ser humano é uma casa de hóspedes.
Toda manhã uma nova chegada.

A alegria, a depressão, a falta de sentido, como visitantes inesperados.

Receba e entretenha a todos
Mesmo que seja uma multidão de dores
Que violentamente varrem sua casa e tira seus móveis.
Ainda assim trate seus hóspedes honradamente.
Eles podem estar te limpando
para um novo prazer.

O pensamento escuro, a vergonha, a malícia,
encontre-os à porta rindo.

Agradeça a quem vem,
porque cada um foi enviado
como um guardião do além.

— Rumi (Mestre sufi do sec. XII)

rumi – casa de hóspedes

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A CASA DE HÓSPEDES

O ser humano é uma casa de hóspedes.
Toda manhã uma nova chegada.

A alegria, a depressão, a falta de sentido, como visitantes inesperados.

Receba e entretenha a todos
Mesmo que seja uma multidão de dores
Que violentamente varrem sua casa e tira seus móveis.
Ainda assim trate seus hóspedes honradamente.
Eles podem estar te limpando
para um novo prazer.

O pensamento escuro, a vergonha, a malícia,
encontre-os à porta rindo.

Agradeça a quem vem,
porque cada um foi enviado
como um guardião do além.

— Rumi (Mestre sufi do sec. XII)

pre-cirurgia

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(foto tirada na véspera da cirurgia)

a semana foi bem animada: paul foi pra nyc pra se apresentar no emprego novo, afinal eu preciso de um plano de saúde no país do “paga ou morre”.

teve resultados da segunda biopsia, consulta com oncologista, decisões e muita onda pra conseguir todos os números do novo plano de saúde. os cirurgiões, o hospital e os lugares onde vou fazer mais exames depois da cirurgia ficaram no pé, pedindo o tal numero do ID. e eu no pé do paul e o paul no pé do cabra do recursos humanos. depois de 48 horas nessa brincadeira sem graça, o tal do ID apareceu e uffa, tudo pôde ser autorizado e confirmado.

segunda-feira pela manhã tem consulta com o cirurgião plástico pra ele riscar os peitos e desenhar o caminho da reconstrução. à tarde tem injeção de um contraste pra cirurgiã-do-tira-peito poder visualizar os linfomas. depois disso tudo feito só vai me restar dormir o sono dos justos pra acordar muito cedo na bendita terça-feira.

a cirurgia ta marcada pras 7:30 e deve durar 4 horas e meia. 2 horas com a remoção dos seios e mais 2 horas e meia com a reconstrução. e haverá de dar tudo certo porque vocês bem sabem que eu nasci o otimismo e a positividade enfiada aqui por dentro e sempre que preciso dela ela aparece firme e forte.
então fica combinado que quem for de torcer, torça. quem for de rezar, reze, que todo pensamento bom é mais do que bem-vindo.
e eu fico aqui cheinha de gratidão <3
p.s. e não falei da chegada da sobrinha Julia que veio ser a cuidadora-mor nessas primeiras semanas. toda a gratidão do meu coração pra você Juju ❤️

Lilia Jolie

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e aí eu fui na doutora cirurgiã e o biloto no 2 não é malvadim. bom saber que é um ponto só mas mesmo assim resolvi (sim ela botou a decisão na minha mão, chega ardeu!) evitar possibilidades futuras e des-peitar duma vez. quem sabe mudo meu nome pra Lilia Jolie.
e assim vou indo, fazendo troça que é pra curar logo isso de vez.
a cirurgia vai ser mesmo na terça dia 9.
agora vou ali conversar com a doutora das drogas pesadas e dou noticias quando voltar.
p.s. nem pensem em me chamar de despeitada porque o moço das plásticas já vai ta lá bem na hora pra fazer peitim novo 🙂

dando o ar da graça

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nunca foi fácil chegar de volta aqui. sempre venho cheinha de saudades e os primeiros dias são de reajuste. dessa vez não foi diferente, mas foi muito diferente. a saudade continuava lá mas eu sentia o calor confortante da presença de vocês. é tudo que eu preciso agora, dessa certeza de ser amada. afinal tudo mais nessa vida é incerto.

na segunda-feira eu fui fazer outra biopsia no “biloto numero 2” que poderia ser malvadim também. como essa semana é o maior feriado daqui, só terei o resultado na segunda-feita. nessas alturas a melhor reza é pra que eu fique calma (uia!) porque o que é já é, e se tiver alguma mágica a fazer será daqui pra frente.
e, surpreendentemente eu tenho conseguido ficar calma por alguns momentos (acho até que devo tá ainda em choque sem acreditar. ou não, quem sabe sou mais competente fazendo drama nas coisas miúdas e quando a coisa sai do controle (glup!) me rendo e me acalmo. será?

só sei que é muito bom demais saber e sentir que tenho vocês e isso é mais da metade da cura. lembrar e relembrar dessa ruma de afeto é remédio poderoso que não tem preço até porque não se compra. eita privilégio grande.

gosto muito dessa época do ano quando o clima muda, a temperatura cai um pouco e posso ficar contemplando o fogo que me re-liga com o que importa nessa vida.
tá bom, né?! quando eu tiver novidades contarei de um tudo.

e como eu sempre dizia: comei, bebei e alegrai vossos corações porque a vida é breve!